segunda-feira, 28 de março de 2011
A comédia em pessoa
Sem delongas, para não dar preguiça de ler. Existem pessoas que só da gente olhar já dá vontade de rir. E têm algumas, que mesmo não querendo, ou as namoradas, esposas, mães, pais, filhos torcendo o nariz elas são engraçadas por natureza.
Uma das pessoas mais engraçadas que já conheci com certeza é o Dodete. Não é que o Dodete tenha uma naturalidade cômica, mas ele cria(va) e se envolvia em situações de dar inveja a qualquer comediante hollywoodiano.
O físico do Dodete, quando jovem, que lhe valeu o apelido de Grilo, a alta estatura e principalmente a língua presa, que o impedia de falar palavras corretas, sobretudo às com erres, compunham um personagem exemplar.
Quando conhecemos o Dodete todo mundo batia nele. De brincadeira é claro. Preocupado, o Fabrício um dia virou para o Calango e perguntou:
- Por que vocês batem no Grilo? Ele é gente boa demais.
- Gente boa???? Você vai ver quando ele pegar intimidade. Ele amola muito, isso sim.
Era verdade. Depois de um tempo também precisávamos dar uns cascudos nele para ele aquietar. O Dodete era aquele tipo de cara chato, gente boa. Que enche o saco de todo mundo, mas que no fundo todo mundo gosta.
Uma vez, fomos a um sítio. O Dodete e o Bruno beberam demais e acabaram passando mal. O Dodete ainda deu duas cabeçadas na parede, tentando entrar numa porta imaginária. Depois disso, a gente trancou os dois em um quarto e fomos dormir na sala. Espalharam uns colchões pelo chão. Eu juntei duas poltronas pequenas de sofá e fiquei todo “encumbucado” na cama improvisada.
Altas horas da madrugada os dois acordam. Vêm para a sala e dizem que vão dormir lá porque o quarto estava “azedo”. Só que o Dodete não deixava ninguém dormir. Aprontou uma falação, uma cutucação. Amolava mesmo. Depois de mais duas horas naquela peleja o Bruno levantou, acendeu a luz e foi taxativo:
- Agora é sério. Quem disser qualquer bobagem, gritar ou falar, vai tomar porrada para valer dos outros. Sem dó. Combinado?!
Todos concordaram. O Dodete ainda deu uma risadinha irônica antes de o Bruno fazer a contagem e apagar a luz:
- Um, dois, três...
Eu já tinha armado o soco para dar no Dodete. Todos nós sabíamos que ele não ia ficar calado. Mas, sempre tem um mas, por incrível que pareça, houve um silêncio sepulcral por alguns minutos naquela escuridão. Quando de repente:
- Auuuuuuuuuuuuu.
Era a deixa que todos aguardávamos para o espancamento do Dodete. Eu estava em posição privilegiada, pois estava mais alto que os outros. Naquele breu, todo mundo batendo no Dodete. Pior que quanto mais a gente batia nele, mas a gente ouvia a risadinha sarcástica do danado. Aquilo me dava uma raiva e eu o enchia de sopapos.
Minutos depois, de porrada ininterrupta, finalmente a gente escuta um chiado:
- Ai... Pára de bater, vocês estão batendo em mim, não no Dodete.
Instantaneamente a luz se acendeu. Do lado do interruptor, sem nenhum arranhão e até roxo de tanto rir estava o Dodete. O @##%¨&* tinha se levantado no escuro e buscado um local seguro, por isso o silêncio. Quando gritou, empurrou o Cabeça para o lugar onde ele estava deitado. O primeiro soco que o Bruno deu acertou em cheio a boca do estômago do Cabeça que, sem ar, não conseguia dizer que batíamos na pessoa errada. Depois disso a gente não dormiu porque o Cabeça ameaçou cortar a garganta do Dodete enquanto ele dormia.
Assim é o Dodete. Quando estudávamos, ele chegava todo esbaforido na cantina do Estadual:
- Ô Zuninho me dá uma cossinha, um guaianá e dos salgado – era forma dele pedir merenda e dois salgados.
- Dodete tem Guaraná não.
- Podi cê Guaiapan então.
Um dia fomos à casa do Sílvio Bernardes, diretor de Teatro. À época, a Ana Bella, filha do Sílvio, era bem pequena. Conversa vai, conversa vem, o Dodete fala com a menina que tinha um monstro no armário. Duas semanas depois o Sílvio reclama com a gente:
- Não sei o que a Ana Bella tem. Ela não quer dormir mais no quarto.
Outra vez, fomos encenar a dona Baratinha na extinta escola Crescer. O Dodete foi o Touro. Um monte de criança pequena assistindo a peça, rindo, se divertindo com a gente. Até que o Dodete entra em cena, corre em direção aos meninos e de uma forma nada lúdica, solta um mugido tão pavoroso que até a gente assustou. Preciso dizer que os menininhos não pararam de chorar mais e que a gente ficou sem o cachê da apresentação?
Mas o mais engraçado foi quando fomos a um parque de diversões. Assim que chegamos o Dodete, o Samir e o Rhafir foram andar no Rotor. Quando eles foram subindo eu ainda avisei:
- Dodete não anda nisto não. Você vai passar mal.
- Que isso Zuninho. Uuuuu mauco. Queo é rodá.
O Rotor começou a rodar e o Dodete gritando, fazendo gracinhas. Na hora que o brinquedo pegou embalo, só escutava o Rhafir dizendo:
- Vira para lá Mané. Não vai vomitar em mim não.
Um menino de sete anos começou a consolar o Dodete:
- Moço passa mal não. Moço, levanta a cabeça, moço...moço...
O Samir desesperou-se:
- Pára! Pára essa P* que estou contra o vento....
Eu que já sabia o que ia acontecer, corri para longe do Rotor. Pena que não deu para avisar quem estava próximo ao brinquedo. Um monte de gente, assim como o Dodete, teve que ir embora para a casa mais cedo...
Tudo que existe na sombra, existe na luz... exceto o medo
Aquelas histórias de assombração mexeram com a gente. No rosto de cada um estava estampado certo temor, ainda que disfarçado pelo grau alcoólico em que nos encontrávamos. Era só parar a conversa que ficávamos desconfortadamente quietos.
A essa altura o Bruno já estava no nível máximo da escala etílica e vendo a galera ressabiada, fixou os olhos na janela de madeira, da cozinha do sítio, e disparou:
- Se existe o Capeta que ele apareça aqui agora.
- Pára com isso Bruno. Isso não é coisa que se fale.
- Ah não Bruno, agora você pegou pesado demais.
Ficamos todos assustados e para piorar, escutamos passos, como se fossem cascos do lado de fora da casa. Satisfeito com a repercussão, o Bruno não parava de chamar o Tinhoso. O terror se instalou entre nós, porque tem coisas na vida que a gente não pode brincar. O Cabeça, ao meu lado, tremia e o resto da galera ria de nervoso.
De repente, alguém apagou as luzes. O Bruno começou a fazer uns barulhos estranhos, como que possuído. Preciso confessar que comecei a tremer também. Então, do nada, surgiu uma bola de fogo no meio da cozinha. Antes que pudéssemos ver o que estava acontecendo já saímos correndo. Eu só tive tempo de ver cinco ou seis passarem juntos por uma porta que só cabia um.
Até o Bruno se assustou, mas estava bêbado demais para correr. A bola de fogo girava pela cozinha escura. Instintivamente peguei uma faca para me defender. Até parece que ia adiantar. Como eu ia esfaquear uma alma penada?
De repente, da bola de fogo veio um sorrisinho conhecido. Fixei os olhos e vi que a assombração nada mais era que o Dodete. Enquanto o Bruno chamava o “Sete Peles”, o Dodete se levantou e apagou luz. Ai pegou a vassoura de coqueiro, colocou no fogo e começou a rodar pela cozinha escura.
O Tiaguinho, que tinha ficado imóvel de medo, explodiu num grito:
- Dodete!!!! Minha tia vai me matar – disse cada vez mais arrependido de ter nos trazido para o sítio.
O Dodete apagou a vassoura ou que sobrou dela, no balde que eu tinha pegado para apagar os “quase incêndios” anteriores O Bruno começou a falar besteira novamente. Todo mundo já estava irritado e ameaçamos:
- Bruno. Se você não parar a gente vai te trancar lá fora.
Como ele não deu ouvidos, cumprimos o prometido. O empurramos para a área de serviço e trancamos a porta.
No início, ele continuou com a história e fazendo barulhos, depois ficou em silêncio, depois bateu na porta:
- Gente abre aqui. Vou parar.
Nenhum de nós se mexeu:
- Gente. Abre. Estou ficando com medo. Abre logo senão vou arrombar a porta.
Nada. Todo mundo parado. Passados alguns minutos ouvimos novamente passos arrastados lá fora e a seguir veio barulho de algo se quebrando. Virei para o local de onde tinha vindo o som e ainda deu tempo de ver a porta da cozinha desmontando.
O Bruno tinha mesmo arrombado a porta. Assustado com o barulho, ele deu uma “voadora” na frágil porta, feita de ripas colocadas lado a lado. A porta não resistiu e as ripas se soltaram.
- Eu avisei – disse o Bruno saindo do meio do feixe de madeira.
- Gente! Minha tia vai me matar – lamuriou-se o Tiago, desta vez certo de que não deveria ter nos trazido.
Começou bate-boca geral, todo mundo xingando o Bruno. Pareciam mil pessoas. De repente a gente escuta o barulho de um soco. Ploft!
O Cabeça, que realmente tinha medo de assombração, estava xingando o Bruno que ficou irritado e deu um soco, meio que de brincadeira, no braço dele. Só que o Bruno é muito forte, então qualquer soquinho, mesmo que de brincadeira, faz um barulhão.
Foi como naqueles filmes. A falação cessou instantaneamente. Olhamos todos com cara de reprovação para o Bruno. O Cabeça, com a mão no ombro, parecia querer chorar. Só o Bruno ria e ao tentar sentar em uma mesa redonda a mesma desmontou e lançou um vaso ao chão.
- Gente. Minha tia vai me matar.
Acho que vocês já sabem quem disse isso?!
Decidimos ir dormir. Dormir nada. Um de nós, apagou devido à bebida. Colocamos ele no chão, para não cair do beliche. Só não percebemos que ele ficou respirando o veneno de rato deixado no chão, ao lado do colchão. No outro dia, não sabíamos se ele ainda estava tonto do álcool ou do veneno.
Já estávamos mais ou menos acomodados, com a casa escura quando vimos uma sombra pular do beliche.
- Oia o que que eu vô fazê – disse o Dodete se aproximando do nosso companheiro apagado.
Sempre quando alguém apagava, nós fazíamos sacanagem. Passávamos creme dental no sujeito, batom e outras peraltices. Mas daquela vez o Dodete se superou. O varapau se aproximou do amigo. Como estava um breu danado só escutamos o barulho de água caindo.
- Ô Dodete onde você arrumou água?
- Que água o quê? Eu tô é fazendo “sisi” nele.
Explodimos na gargalhada. Preciso dizer que depois que nosso amigo descobriu o banho que tomou nas pernas o Dodete nunca mais dormiu antes dele. Até hoje o Dodete está jurado porque é claro que contamos depois.
Para disfarçar, o Dodete jogou óleo de cozinha no coitado.
- Ah não, vai manchar o colchão. Minha tia vai me matar.
Depois disso, o Dodete pulou a janela do quarto e se dirigiu para porta da frente. O Aldair tinha se aboletado no sofá e já começava a dormir. O Dodete então, esmurrou a porta, acordando o coitado, que de um salto só ficou sentado na cama improvisada:
- Gente...gente...tem gente aqui.
- Aldaiiii eu vim te buscáaaaaaaa...
O Aldair se levantou. Correu para copa. Nisto alguém puxou o seu cobertor, que rasgou no meio certinho. De madrugada, o coitado do Aldair passou tanto frio que quase chorou de raiva. Na correria, alguém subiu em cima de uma cama de casal e a quebrou. Preciso dizer o que o Tiaguinho disse?!
O Dodete entrou e disse que havia vacas no curral. Estava explicado os passos que ouvimos.
No outro dia, tudo que se quebrou foi consertado. As exceções foram o vaso e o colchão, que realmente manchou. Bem. A história não terminou bem assim porque quando o resto do pessoal chegou no outro dia:
- Ué gente? Mas vocês não compraram bebida e comida para os dois dias?! Só sobrou essa meia garrafa de vodca???????
Pensei em correr, mas eu ia ficar por último mesmo....
Serpentina, banho quente e mais um incêndio ou de como o fogão também toca fitas
Voltávamos a pé da cachoeira. Quando nos encontramos com o Aldair, que vinha voltando da casa, depois de mais uma conferida no feijão, que ele insistia em cozinhar em uma panela, o que a gente mais queria era descanso e se preparar para noite. Tínhamos andado demais aquele dia.
Quando chegamos a casa, o feijão do Aldair continuava lá, na panela. Depois de mais de quatro horas de cozimento ele começava a dar sinais que seria vencido pela persistência do Aldair, que virava e mexia, colocava mais água no feijão.
Tomamos café e ficamos ali na “boresca”. Como éramos muitos, começou a briga por quem tomaria banho primeiro. Na casa, havia apenas um chuveiro de serpentina e como a caixa era pequena se a água acabasse teríamos que ir ligar a bomba. Só o Dodete parecia não se importar com a fila do banho.
- Pode i tomá banho pimeiio. Eu vô po último – dizia ele na língua sem os erres.
De cara já achamos estranho. Aquilo dele deixar a gente tomar banho primeiro só podia ser golpe.
Fizemos a fila, marcamos com chinelos a posição de cada um e limitamos o tempo do banho. Não me lembro bem quem foi o primeiro. Lembro apenas do urro que ele deu dentro do banheiro. Explico: para quem não sabe como funciona um chuveiro a serpentina, eu desenho. O chuveiro a serpentina é o avó do aquecedor solar. A mecânica é a mesma, só que ao invés da água passar pelas placas aquecidas pelo sol, ela passa pelos canos instalados dentro do fogão de lenha. Ou seja, em alguns casos a água ferve mesmo. Para se temperar a água é preciso abrir uma torneira de água fria e assim tomar um banho morno. O primeiro a tomar banho naquela tarde não sabia disso e como o Aldair tinha mantido o fogo aceso o dia inteiro, para cozinhar o danado do feijão, a água estava até supitando.
Sei que depois do grito, a galera descobriu como não se queimar e um a um fomos tomando banho:
- Agoa eu vô fica debaixo do chuveiio até a água acabá, sou o último mesmo – disse rindo o Dodete.
Sabia que ele não teria ficado por último à toa. Lá se foi o Dodete para o banheiro. Na boca, um sorriso irônico.
Passados alguns minutos, chega o Dodete, enrolado na toalha.
- Que bosta sô. A água acabô. Vou te que i lá liga a bomba.
Caímos todos na gargalhada. O diabo planeja, Deus toma. Trem bão. Achou que ia se dar bem em cima de nós, se ferrou. Lá se foi aquele varapau, em meio ao mato, ligar a bomba. Enquanto a caixa enchia, a carne na churrasqueira chiava gostoso. A gente bebia alegremente.
A esta altura, o feijão do Aldair já estava quase cozido. Segundo ele, agora era só deixar as brasas manterem o calor que quando a gente fosse jantar estaria no ponto. Ele apagou o fogo e deixou só nas brasas.
Quase uma hora depois, a caixa começou a verter água pelo ladrão. Sinal de que já estava cheia. Lá se foi o Dodete desligar a bomba e finalmente tomar seu banho.
- Ô Zuninho. Como é que faz para toma banho quente? A água tá fiia.
- Ah Dodete. É porque o fogão está sem fogo. Bota lenha que vai esquentar.
Disse isso e voltei para a área de serviço. Já tinha anoitecido. A casa estava escura e só a lâmpada perto da churrasqueira ligada.
- Fogo. O Dodete botou fogo na cozinha. Minha tia, vai me matar – gritou o Tiago.
Incêndio de novo não. Lá fui eu em busca do balde com água. Quando cheguei na porta da cozinha, o Dodete vinha saindo do banheiro:
- Ô Zuninho, deu certo não. Coloquei fogo no fogão e água tá fiia.
Quando olhei para o fogão, o Dodete tinha mesmo colocado fogo lá. Só que ao invés dele colocar fogo dentro do fogão, ele tinha pegado madeira compensada e colocado em cima da trempe. O fogaréu estava indo no teto.
- Meu feijão. Dodete, você é louco, o fogo é dentro do fogão, agora meu feijão deve ter queimado - reclamou o Aldair.
Colocamos a madeira pegando fogo no lugar certo, o Dodete finalmente tomou o banho e decidimos jantar.
Até hoje guardo na memória a cara de satisfação do Aldair quando ele comeu a primeira colher de feijão. Ele olhou para a gente, sorriu com os dentes todos pretos:
- Gente. Isso ficou bom demais.
E tinha ficado mesmo. Também um feijão cozido em mais de 12 horas não tinha como ficar ruim.
Pouco tempo depois já estávamos mais para lá do que para cá. Não sei por que, mas sempre que a turma está reunida em um sítio, rola algumas conversas sinistras de assombração. Naquele último sítio, com um quarto apelidado de “Morte do Demônio”, não foi diferente. Sentamos e começamos a falar bobagens sobre espíritos, assombração etc.
Àquela altura da noite, a gente já estava para lá de Marrakesh. O assunto foi ficando pesado..foi ficando pesado.... Ai o Dodete levantou, deu uma passada perto do toca-fitas. Abaixou um pouco o volume, passou pelo fogão. Sentou e disse:
- Eu queiia fala não. Mas alguém pegou uma fita e zugou no fogo ali.
Naquela época, fita cassete era algo caro. De verdade. Não era como hoje. Não tínhamos internet, gravávamos músicas ou de discos dos amigos, ou das rádios. Era uma aventura
- Minha fita do Bon Jovi. Eu te mato Dodete – berrou o Cabrito que era fã do Bon Jovi. Inclusive tinha um pôster no quarto dele, que ele insistia que era do irmão. (Risos. Ele vai me matar quando ler isto aqui).
O episódio foi até bom, para descontrair os ânimos e quebrar o clima tenso. Mas assim que apartamos a briga o assunto dos espíritos voltou. O Bruno, que a essa altura já tinha virado monstro por causa do álcool, olhou fixamente para a janela e disse uma coisa que deixou todo mundo apavorado.....
Continua...
Feijão que não cozinha ou de como uma cachoeira só é bobagem
Depois que eu cheguei claudicando (novidade) na área de serviço, com um balde na mão para apagar o incêndio, descobri que o fumaceiro todo no sítio da tia do Tiaguinho era nada mais nada menos que um dos meninos tentando acender a
churrasqueira.
O lugar estava empesteado de fumaça. Lá na cozinha, o Aldair teimava em cozinhar feijão preto, que até aquela hora, quase uma hora e meia depois de acendermos o fogão a lenha, estava apenas enrugadinho e duro como um porrete. O Aldair jurava a nós que seu método de cozinhar feijão iria dar certo. Era só esperar ferver que ele colocava água fria. Bom, até aquele momento, não sei quantas águas depois, feijão cozido negas de catiribecas.
O fogo ardia na churrasqueira, as panelas queimando no fogão e a gente ali. Eu com o joelho dolorido, depois que o Fabrício tinha me derrubado na pinguela, e mais verde (por causa d'água com lodo) do que o incrível Hulk. O resto da galera se
divertindo.
Resolvemos colocar a carne naquele misto de fumaça, fogo e nada de brasa, que chamávamos de churrasqueira. Menos de meia hora depois o almoço estava servido. Arroz, salada de tomate com alface e carne esturricada por fora e nem um pouco assada por dentro.
A cada dentada no pedaço de contra-filé a gente ouvia:
- Muuuuuuu – de tão crua que a carne estava.
O feijão do Aldair? Bem o feijão do Aldair estava lá naquela panela de ferro com PH. Cozido? Ahhh gente! As casquinhas ainda nem tinham começado a amolecer.
O dia tinha começado cedo e não eram nem três horas da tarde. Já percebeu como dia passa lento na roça? Meia hora parece uma eternidade.
Depois do almoço ficamos ali, na lombeira. Para quem leu Monteiro Lobato, sabe que nestas horas é que se costuma ver Sacis. Eu não duvidei que a qualquer momento o perneta aparecesse.
Naquele fim de mundo, com o sol escaldante, naquela hora, era perigoso vir o Saci, a Mula sem cabeça e por aí vai. Mas o negrinho não veio e ficamos ali de bobeira. Meia hora depois o Tiago diz:
- Vamos lá cachoeira?
Para quem acompanha esta história sabe que o Tiago tinha nos prometido várias cachoeiras, mas tinha nos prometido também que o sítio ficava a apenas 15 minutos de caminhada. Chegamos ao local, depois de passar seis porteiras e quase
duas horas e meia depois.
Só o anúncio da cachoeira me causava frio nos ossos. Não por causa da água. Mas pela caminhada. Temia, de novo, ficar caminhando pela estrada infinita.
Arrumamos nossas coisas e partimos. O Aldair deixou o feijão preto no fogo. Segundo o Tiago, a cachoeira era perto e como no fogão a lenha só havia brasas, não precisaria voltar com freqüência, para coloca água no feijão é claro.
Caminhamos por outra estrada durante uns quinze minutos, quando o Tiago disse:
- Chegamos.
- Chegamos onde? – perguntei eu.
Para cima era só pasto, para baixo, só pasto. Uns 300 metros abaixo uma mata fechada.
- É ali embaixo. A cachoeira fica depois da mata.
Sinceramente. Minha vontade foi de chorar. Já tinha pensado que ficaria sem comida, corrido atrás de charrete, sido derrubado em uma água fétida, almoçado carne crua e o gente boa (tá bom, ele é gente boa sim, aliás da melhor qualidade)
do Tiago, me mostra uma mata cerrada e diz que a cachoeira prometida era ali?! Bom estava ferrado mesmo, melhor descer.
Começamos a descer o pasto, com mato na canela. Na verdade, a mata não era tão densa quanto aparentava. Logo depois das primeiras árvores, aquele córrego que passava no fundo da casa do sítio se transformava em um pequeno riacho e havia muitas pedras. Realmente ali havia uma cachoeira com um poço.
- Viu, falei com vocês que valia a pena – disse o Tiago vitorioso.
Realmente o lugar era bonito. Mas, sempre tem um mas, ensombreado por completo. O Bruno, o mais forte, se aventurou por entre as pedras cobertas de lodo, chegou a beira do poço e ploft, mergulhou. Subiu já com uma redoma de gelo em volta, igual aos desenhos animados:
- Pus pariu Tiago. Essa água ta mais gelada que a da geladeira.
Era verdade. Com a sombra e as pedras e como desde Adão e Eva apenas Judas tinha passado por lá, a água corria na sombra, entre pedras e debaixo das árvores, isso a tornava mais que gelada. Aquilo, a cada mergulho fazia o pintinho da gente se encolher cada vez mais.
Para não enfrentar o lodo das pedras e não cair, dei a volta no mato. Pisei em uma folha de coqueiro cheia de espinhos e fui limpar o sangue na água gelada.
Ficamos dez minutos ali e o Tiago disse que mais para frente tinha outra queda d'água, mas era só uma queda sem poço.
Decidimos ir para lá. Na subida, o Samir ainda viu uma jibóia engolindo um sapo.
Chegamos na tal queda d'água. Na verdade, era um paredão rochoso. Tínhamos que saltar vários vãos de pedra. Tínhamos não, eles tinham. Porque eu não conseguiria saltar aquilo nem se nascesse de novo. Fiquei no topo mesmo, longe dos meus amigos, mas me divertindo em um pocinho formado logo no início do paredão.
Aquela queda era melhor. Tinha sol, a água corria entre as pedras. Ficar ali era bom. Quase uma hora depois que chegamos, o Aldair grita:
- Gente, meu feijão.
E lá se foi ele correndo rumo a casa para colocar água no feijão. Quando voltou o sol já tinha ido embora perguntamos:
- E aí? Já cozinhou?
- Não ainda não, mas vai ficar bom.
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